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O direito de Ser que foi roubado: um ensaio do livro “O olho mais azul” – Toni Morrison sobre a vivência de jovens negras em sociedades multirraciais

Resenha por Kahena Bizzotto @umapretaensinou

O direito de Ser que foi roubado: um ensaio do livro “O olho mais azul” – Toni Morrison sobre a vivência de jovens negras em sociedades multirraciais
O direito de Ser que foi roubado: um ensaio do livro “O olho mais azul” – Toni Morrison sobre a vivência de jovens negras em sociedades multirraciais (Foto: Reprodução)

O livro: O olho mais azul de Toni Morrison uma mulher negra, que retrata de uma forma breve e de certo modo insensível à trajetória das mulheres que por muitos são inferiorizadas, objetificadas, marcadas pela vida que levam, moldadas para serem mães e empregadas domésticas de famílias brancas, dando a essas famílias para quem dedicavam grande parte de suas vidas a atenção, que muitas vezes os próprios filhos não recebiam, tratamentos especializados, diferenciados, afinal, os patrões geralmente são brancos, ricos, considerados bonitos e parte dos modelos ideais de família.

Mas tinham sido jovens um dia. O cheiro de suas axilas e de seus quadris mesclaram-se em um almíscar agradável; os olhos tinham sido furtivos, os lábios descontraídos, e seu delicado virar de cabeça sobre aqueles delgados pescoços negros assemelharam-se ao de uma gazela. Seu riso tinha sido mais toque do que som.

Depois cresceram. Entraram devagar na vida pela porta dos fundos. Transformaram-se. Todo mundo podia lhes dar ordens. As mulheres brancas diziam “Faça isso”. As crianças brancas diziam “Me dá aquilo”. Os homens brancos diziam “Venha cá”. Os homens negros diziam “Deita”. As únicas pessoas de quem não precisavam receber ordens eram as crianças e as outras mulheres negras. Mas elas pegaram tudo isso e recriaram à sua própria imagem. (…)

Aí elas ficavam velhas. O corpo resmungava, seu cheiro azedava. Agachadas num canavial, curvadas numa plantação de algodão, ajoelhadas na margem de um rio, tinham carregado um mundo na cabeça. (…) De fato, e finalmente, elas eram livres. E a vida dessas velhas negras era sintetizada em seus olhos – um misto de tragédia e humor, malícia e serenidade, verdade e fantasia (Morrison Toni; O olho mais azul; São Paulo: Companhia das letras, 2003; páginas 139 – 140)

Essas mulheres lavavam, passavam, organizavam, cozinhavam, cuidavam dos filhos, davam carinho, e ao voltarem para casa encontravam maridos incompreensivos, filhos sedentos de atenção e muitas vezes que aprendiam a reprimir igualmente seus sentimentos.

Sem espaço algum para si elas escondiam a própria personalidade, reclamavam aos berros, executavam todo o trabalho doméstico novamente, alimentando, lavando, secando, educando os próprios filhos, preparando-os para a vida de maneira dura e rígida, da mesma forma que foram criadas, educadas para obedecer aos brancos.

Bell Hooks em Vivendo de amor afirma que a mulher negra possui certa dificuldade em expressar o amor que sente. Como marca da escravidão, a repressão dos sentimentos fica marcada na mulher negra que ao criar seus filhos de forma ríspida e até mesmo violenta, reproduzindo a forma hierárquica pela qual os escravos eram tratados pelos senhores de engenho.

A escravidão criou no povo negro uma noção de intimidade ligada ao sentido prático de sua realidade. Um escravo que não fosse capaz de reprimir ou conter suas emoções, talvez não conseguisse sobreviver.” (Hooks Bell; Vivendo de amor; página 3)

É visível esse tratamento que as crianças negras são submetidas pelos pais no livro: O olho mais azul. Passagens escritas por Claudia, personagem principal, relatando a forma pela qual a mãe monologava e surrava as filhas como método de correção; ou na passagem em que a Sra. Bredlove, mãe de Claudia, encontra a bagunça que filha e as amigas haviam feito na cozinha e as repreende, contrastando com a forma com que trata a criança branca filha dos patrões.

A questão é que o mundo não dá as mulheres a mesma cortesia que dá aos homens, muito menos as mulheres negras a mesma cortesia que dá as mulheres brancas. É uma questão de privilégio. Olhos azuis, lábios finos e avermelhados, pescoços longos, pernas finas, nariz fino, pele branca. Belo. A beleza branca é inigualável, você possui ou não. Não se pode adquirir.

Os brancos são belos, os negros são feios, os mulatos podem ser feios ou bonitos, dependendo da tonalidade de sua pele, da cor dos seus olhos e delicadeza de seus traços, mas nunca se igualarão aos brancos. Os brancos são limpos, negros sujos. Uma lógica simples assim, o negro é ofensivo, inferior, o branco é melhor, sempre.

Onde isso está escrito? Quem disse que é essa é a verdade? Quem testou e comprovou? Quem desumanizou as pessoas pela cor da sua pele? Não é questão de culpabilizar um indivíduo mas sim de contestação e afrontamento da lógica de beleza branca.

A arte e a prática de amar começam com nossa capacidade de nos conhecer e afirmar. É por isso que tantos livros de auto-ajuda dizem que devemos mirar-nos num espelho e conversar com nossas próprias imagens. Tenho percebido que às vezes não amo a imagem ali refletida. Eu a inspeciono. Desde que acordo e me vejo no espelho, começo a me analisar, não com a intenção de me afirmar, mas de me criticar. Isso era comum lá em casa. Quando eu e minhas cinco irmãs descíamos as escadas em direção àquele território ocupado por meu pai, minha mãe e meus irmãos, entrávamos no mundo da “crítica”. Tudo era observado e tudo estava errado conosco. Raramente uma de nós era elogiada. Quando substituo a crítica negativa pelo reconhecimento positivo, sinto-me mais forte para começar o dia. A afirmação é o primeiro passo para cultivarmos nosso amor interior. Uso a expressão “amor interior” e não “amor próprio” porque a palavra “próprio” é geralmente usada para definir nossa posição em relação aos outros. Numa sociedade racista e machista, a mulher negra não aprende a reconhecer que sua vida interior é importante. A mulher negra descolonizada precisa definir suas experiências de forma que outros entendam a importância de sua vida interior. Se passarmos a explorar nossa vida interior, encontraremos um mundo de emoções e sentimentos. (Hooks Bell; Vivendo de amor; página 5).

Pecola, uma das personagens do livro, é uma das representações da imagem dessa mulher negra que Bell Hooks pontua em seu texto, apesar de ainda ser uma criança Pecola já desenvolvia por si mesma um não reconhecimento do belo e a interiorização de seus sentimentos. Se tornou cada vez mais inferiorizada, por homens, mulheres, garotos e garotas da escola. Ao acreditar que possuía olhos azuis Pecola se sentia diferente, poderosa, bonita, esperançosa, sente que as pessoas a olham diferente por possuir os olhos considerados belos e azuis, os mais azuis que qualquer outro.

A personagem materializa os medos, as vivências da mulher negra, que desde criança já sofre a dor de ser diferenciada, não aceita, criança desajustada, fora dos padrões ideais, negra e pobre. Juntamente com a mãe se isola em uma casa em local ainda mais distante e vive ali. A personagem, reflete de forma extrema as inseguranças pelas quais muitas mulheres negras passam, mostrando o lado mais ingênuo da mulher negra, que consegue passar pelas particularidades a que lhe são infringidas.

(…) Estava num lugar escuro, úmido, a cabeça coberta de rodelas de carapinha, o rosto negro com dois límpidos olhos negros, redondinhos como moedas de cinco centavos, narinas abertas, grossos lábios de beijo, e a pele negra sedosa, viva, respirando. Não havia cabelo loiro sintético suspenso acima de olhos azuis de bola de gude, não havia nariz afilado nem boca em arco. Mais do que afeto por Pecola, eu sentia intensamente a necessidade de que alguém quisesse. que o bebê negro vivesse – só para contrabalançar o amor universal por Baby Dolls brancas (…) (Morrison Toni; O olho mais azul; São Paulo: Companhia das letras, 2003; página 190).

Referências Bibliográficas

Morrison Toni; O olho mais azul; São Paulo: Companhia das letras, 2003;

Hooks Bell; Vivendo de amor; Geledès. 2010. < https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/?gclid=CjwKCAjw9e6SBhB2EiwA5myr9lVz7oHruzw1IbnQQsQrwGV_QRN-8qdKcleLzsPbi-fHD-PWoqkJghoCwW0QAvD_BwE> Acessado em 18/04/2022

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